segunda-feira, 2 de março de 2009

As condições para ensinar a pescar

*Patrus Ananias
"Dar o peixe ou ensinar a pescar?"
Esse falso paradoxo há muito deveria estar superado nas discussões sobre políticas assistenciais. Mas vejo que é uma concepção tão arraigada no senso comum que é necessário insistir mais uma vez na desmistificação desse dilema que é quase uma instituição nacional.

A dívida social acumulada ao longo de anos no Brasil deixou conseqüências graves e, somando a extensão territorial, um problema com características tão complexas quanto a formação do povo brasileiro. Isso significa que não comporta soluções simplistas, não bastando escolher entre duas opções. Há que ter em mente as peculiaridades da realidade dos problemas dos pobres para não perpetuar a dívida com os excluídos e aumentar ainda mais o fosso que os segrega dos direitos de cidadania -o direito à alimentação, trabalho, educação, saúde, saneamento, habitação.

Em meio à polêmica em torno das políticas de transferência de renda, principalmente em torno do Bolsa-Família, carro-chefe do Fome Zero, temos sido criticados pelos que defendem uma política mais universalista e que amplie o programa indistintamente a todos os brasileiros. Mas temos sido cobrados também pelos "focalistas", que exigem a orientação de recursos unicamente para aqueles que, dentre todos os pobres do país, estejam ainda mais necessitados, que já tenham esgotado todas as alternativas de uma vida digna. Aí entra o falso paradoxo a que me referi, pois aos demais pobres deveríamos ensinar a pescar. No entanto uma coisa não impede a outra. Podemos dar o peixe e ensinar a pescar tanto um quanto o outro. E dar o peixe, nessa perspectiva, muitas vezes significa dar as condições necessárias para que se aprenda a buscar o outro peixe por conta própria.

Temos, segundo dados do IBGE publicados em 2002, 11,4 milhões de famílias que vivem abaixo e na linha da pobreza, e são essas pessoas que queremos atingir com o Bolsa-Família. Essa é a dívida social brasileira herdada pelo governo do presidente Lula e que estamos determinados a resgatar. Não são todos famintos, mas, além de matar a fome dos que não têm o que comer, o programa tem principalmente um caráter preventivo e seu objetivo é evitar que os pobres caiam na indigência; é promover a autonomia das pessoas, inclusive fortalecendo os laços familiares e, com isso, garantir melhor acesso à educação e criar condições para seu desenvolvimento pessoal, profissional e social.

Tanto queremos essa integração que o programa confirma e reafirma a responsabilidade da família em manter seus filhos na escola.

Há famílias que, por um problema ou outro, passam por um período maior de dificuldade, e nesse momento uma ajuda financeira pode ser o ponto de equilíbrio para manter a unidade das pessoas numa casa, para preservar o ambiente familiar de maneira a oferecer condições saudáveis aos filhos. Por isso, a quem me diz que estamos gastando muito com os pobres, respondo que ainda é pouco diante da dívida social que acumulamos. é por falta de apoio a essas famílias que muitas caem na indigência, o que torna mais difícil uma intervenção no problema.

O dinheiro destinado aos pobres tem um efeito prático para além de sua dimensão ética e moral, que é a garantia do direito à vida, à educação, à alimentação de qualidade e à dignidade. Esse efeito prático é estimular a inserção econômica das pessoas, promovendo o desenvolvimento descentralizado, com distribuição de renda. Mas também tem papel de inserção social, de criar condições de igualdade inclusive para acesso à educação e à saúde. Além da dimensão ética e moral de garantia do direito à vida e à alimentação, a política social estimula e dá sustentação ao mercado interno, pois dinamiza economias locais.

Além da educação de qualidade, nossas crianças devem ter condições de usufruir desse direito. Estou mais uma vez convencido de que é necessário desfazer a concepção equivocada em torno de uma solução simplista e reducionista em torno da educação, que acaba sendo apresentada como panacéia para todos os problemas sem considerar a complexidade que a envolve.

O investimento em educação é inquestionável, mas não basta uma boa escola se a criança não tem para onde retornar, se não tem um ambiente familiar que lhe dê segurança afetiva e emocional ou mesmo condições materiais. Numa família desintegrada, a criança não vai à escola e se torna presa fácil da violência, do tráfico, da prostituição, da indigência. Nesse sentido, as políticas de transferência de renda exercem uma função estratégia de impedir o processo perverso de desintegração dos ambientes familiares.

A família é o primeiro ambiente onde se forma a personalidade e se criam os princípios da responsabilidade, da ética e da disciplina; é o ambiente pedagógico por excelência, que antecede e complementa a escola. Por isso estamos determinados a atuar nesse espaço, dando o apoio necessário ao equilíbrio das famílias. Porque através delas é possível dar o peixe e ensinar a pescar; e é possível criar as bases para dar sustentação às outras políticas sociais, para dar sustentação a uma política educacional com foco na formação emancipatória do cidadão.

*Patrus Ananias de Sousa é ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

*Artigo publicado originalmente em 27/12/2004 no jornal Folha de São Paulo.

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