segunda-feira, 2 de março de 2009

Somos árabes e judeus

O terrorismo é inaceitável, mas não pode ser julgado de forma unilateral


*Patrus Ananias

O trágico cenário de violência e mortes que, mais uma vez, recai sobre os povos árabes e judeu, particularmente libaneses e palestinos, além dos sentimentos de humanidade e indignação, despertam com renovadas forças as minhas raízes que remontam ao país dos cedros milenares.
Meu avô materno, de quem herdei o prenome, chegou ao Brasil, ainda muito jovem, no começo do século 20.
Aqui ele se constituiu como homem e cidadão de bem, formou numerosa família, ajudou e ajuda, por meio de seus descendentes, a construir a grande e acolhedora pátria brasileira.
Além dessa vinculação direta dos descendentes que formam a solidária e operosa comunidade líbano-brasileira, todos os brasileiros trazemos no sangue e na cultura a herança árabe que durante séculos marcou presença na península ibérica, desenvolvendo “a brilhante civilização moçárabe”.
Chegou-nos também a influência da tradição árabe islâmica por muitos dos nossos antepassados africanos.
Se tivemos as guerras e os conflitos decorrentes da expansão do mundo árabe e a formação dos estados europeus nos últimos séculos do primeiro milênio, tivemos, também e sobretudo, o legado do pensamento árabe e da tradição islâmica.
Etienne Gilson, n’A Filosofia da Idade Média, depois de sumariar a obra de importantes pensadores muçulmanos, fala sobre Averróis, “cuja influência propagou-se em múltiplas direções durante toda a duração da Idade Média, depois na época da Renascença e até o limiar dos tempos modernos”.
De outra parte, mas partilhando origens comuns com os árabes e outros povos, a tradição judaica expande a sua inspiração, ao longo dos séculos, a todos os cantos do mundo, extrapolando os limites do ocidente.
Os judeus revelaram ao mundo, antecedendo, e na mesma linha ética do Deus do Islã, um Deus da Justiça, comprometido com a história humana e que já no Antigo Testamento anunciava sua universalidade.
Da tradição judaica temos, entre tantos, a herança espiritual superior de João Batista, da Moça de Nazaré e de Jesus, o judeu que chorou sobre Jerusalém e manifestou ao mundo o Deus da compaixão e da misericórdia.
Estão presentes nas páginas da história as discriminações e sofrimentos que se abateram sobre o povo judeu, da diáspora à ignomínia do holocausto.
Muito sofreram também os árabes com as cruzadas, o colonialismo e a escravidão dos vencidos. Muito sofrem os palestinos, sem pátria. Árabes e judeus são, assim, fundadores da nossa cultura e fiadores de projetos emancipadores da condição humana.
Em nome desses valores civilizatórios, é necessário identificar situações e responsabilidades: o povo judeu tem direito à sua pátria e ao seu estado.
Por sua vez, o Estado de Israel, criado por decisão da Organização das Nações Unidas (ONU), presidida pelo nosso Oswaldo Aranha, deve cumprir as decisões da mesma ONU e retornar às fronteiras anteriores à guerra de 1967.
Assim como os judeus, também os palestinos têm o direito ao seu território e ao seu estado. É urgente assegurar a sobrevivência e a reconstrução do Líbano. A Europa, que tanto ocupou e explorou a região, tem uma responsabilidade especial no processo de construção da paz e de apoio a um vigoroso programa de desenvolvimento econômico e social dos países árabes - um novo Plano Marshall para os povos empobrecidos do Oriente Médio.
O terrorismo é inaceitável, mas não pode ser julgado de forma unilateral. Dezenas de civis indefesos, sobretudo crianças, assassinados é um ato de terrorismo, crime contra a humanidade, venha de onde vier.
O procedimento do Estado de Israel fere o princípio da proporcionalidade. Por mais inadmissível que seja o seqüestro de dois soldados, não se justifica, à luz do direito internacional e da Convenção de Genebra, a destruição de um país.
Acrescem as profundas tradições pacíficas dos libaneses e que no espaço de pouco mais de 30 anos sofreram três processos sucessivos de guerras e agressões.
Profundamente identificado, filho espiritual também do judaísmo, ouso dizer parafraseando João Batista, o profeta: não é licito o que o Estado de Israel, com o apoio incondicional dos Estados Unidos, está fazendo. Na solução dos conflitos, o primeiro gesto magnânimo deve vir dos mais fortes: o poder militar de Israel é incomparavelmente superior, mas talvez não prevaleça em face da resistência desesperada de um povo sem pátria e dos que querem, a todo custo, preservar o que construíram. Não acumulem mais ódios.
A espiral da violência, ensinava dom Hélder Câmara, é interminável.
Só os gestos e iniciativas de reconciliação e paz podem interrompê-la.
*Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Publicado: Estado de Minas 17/08/2006

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