domingo, 1 de março de 2009

As raízes do mal

Patrus Ananias*

CPIs, com todos os seus percalços e teatralidades, estão expondo as entranhas do tumor que suga os recursos nacionais

Os tristes acontecimentos que dominam a agenda pública no País exigem pleno esclarecimento e punição dos responsáveis, obedecidos os procedimentos legais. Ao mesmo tempo – e não podemos ignorar isso, sob pena de sermos cobrados pela história –, manifestam os sintomas de uma enfermidade moral muito mais histórica e profunda, exigindo um tratamento a altura, que busque as mais profundas raízes da doença como método para extirpá-la em toda a sua extensão.

O problema constante da corrupção no Brasil está vinculado a três questões históricas: as relações confusas e promíscuas entre os espaços públicos e privados, as desigualdades e injustiças sociais – seguramente a maior interpelação ética no passado e no presente da pátria brasileira – e, unificando os dois pontos, a impunidade. Para os poderosos, que vêem a nação como uma extensão dos seus negócios, o crime compensa quando posto na balança de perdas e ganhos. Além da convicção de que, no limite, saberão driblar as cominações legais, acresce a pesada herança das capitanias hereditárias, das sesmarias e do escravagismo. Os donatários tinham poderes governamentais e ganhos privados sobre as suas capitanias. As sesmarias, origem do latifúndio e do coronelismo, tornaram-se estados dentro do estado, uma reminiscência mal formatada do feudalismo – tema de longa polêmica na historiografia brasileira. Agravante desse quadro, a escravidão desqualificava o trabalho e conferia aos escravocratas poderes de vida e morte sobre os escravos que não eram considerados seres humanos e, sim, bens dos seus donos.

Quanto mais o estado brasileiro se colocou a serviço dos interesses particulares ou corporativos, mais cresceu o outro problema, o verdadeiro pomo do desacerto nacional: a expansão vergonhosa da pobreza; pior, da miséria e da indigência. Eis o enigma fundamental do nosso País: um dos quatro ou cinco países mais ricos do mundo, em termos de recursos e potencialidades, disputa a trágica primazia de concentração de renda e desigualdades sociais.

Estamos realizando no governo Lula o mais ousado esforço para reverter esse quadro. Pela primeira vez, temos um ministério voltado, única e exclusivamente, para os pobres e excluídos, com um orçamento de R$ 17 bilhões. A questão social sai do campo do assistencialismo e do clientelismo, fatores permanentes de corrupção, para o campo das políticas públicas normatizadas e geridas pelos princípios republicanos. Mas a dívida acumulada é muito alta. Atravessamos os séculos XIX e XX sem realizar uma reforma agrária justa e democrática e sem aplicar o princípio da função social da propriedade e do lucro.

Não obstante as importantes conquistas sociais depois de 1930, continuou prevalecendo a lógica da concentração impossibilitadora do projeto nacional que coesione o País em torno de valores éticos e sociais compartilhados: a primazia do bem público e a extensão dos direitos e deveres fundamentais a todos os compatriotas. A miséria aviltante atinge aquele que a sofre e contamina a consciência dos ricos que passam a ver, como natural, a divisão da nacionalidade e da cidadania em diferentes categorias. Um cidadão excluído, e no Brasil são tantos milhões, não tem motivos para se comprometer com as grandes causas nacionais, embora, muitas vezes, o façam a despeito das condições adversas. Mas, concretamente, não há porque uma pessoa que dispute a cada dia o direito a um prato de comida não faça do seu voto um instrumento de troca vinculado à sua sobrevivência e de sua família. Está armado o circuito da corrupção eleitoral: como muitos se elegem por esse método, não é difícil concluir que a eles interessa a preservação desse trágico quadro social.

O sentimento de impunidade é uma decorrência desse sistema que se articula ao redor dos que detêm o poder político e econômico; eles tendem a considerar que as instituições existem para protegê-los. Todavia, as pessoas que transcendem os preconceitos haverão de reconhecer que também nesse aspecto o Brasil está mudando; as operações da Polícia Federal e do Ministério Público estão levando para a cadeia dezenas, centenas de empresários fraudulentos e agentes públicos que traíram o mandato do povo. Comissões parlamentares de inquérito, com todos os seus percalços e teatralidades, estão expondo as entranhas do tumor que suga os recursos nacionais. A história poderá reconhecer esse momento como um grande divisor de águas na evolução do Brasil. Certamente o fará, se estivermos à altura dos desafios que se colocam diante de nós.

(*) Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Artigo publicado originalmente em 04/08/2005 no
Estado de Minas (MG).

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