domingo, 1 de março de 2009

Tolerância

Recentemente, li um artigo que Umberto Eco escreveu para uma revista brasileira recuperando parte do legado de Paul Ricoeur, vigoroso pensador que faleceu há cerca de nove meses, aos 92 anos.

Curioso é que a repercussão dessa notícia no Brasil teve dimensão inversamente proporcional à importância do pensamento de Ricoeur nas mais variadas áreas da filosofia e do pensamento político-social dentro da tradição cristã, no Brasil e em vários outros países. Paul Ricoeur participou com Mounier - a quem já me referi neste mesmo espaço no ano passado - da aventura intelectual que foi a revista Esprit. Mounier foi uma grande influência do jovem Ricoeur, e ambos inauguraram uma época com suas brilhantes contribuições para a formação político-filosófica do personalismo-comunitário.

Além do grande mérito de resgatar a presença desse importante filósofo francês, o artigo de Umberto Eco me chamou a atenção também pelo fato de retomar a fala de Ricoeur sobre a tolerância situada em um nível mais elevado: uma tolerância que não se confunde com a indiferença, que preserva a indignação diante da situação humana inaceitável a partir de valores éticos cristãos. Penso que poucas coisas me parecem tão oportunas como se debruçar sobre esse tema que já esteve presente também na obra de outros autores representativos do pensamento ocidental, como Aristóteles, John Locke, Montaigne.

É uma tarefa a ser cumprida na política do Brasil. Para elevar, e manter elevado, o nível da discussão política, precisamos superar a polêmica e a provocação para alcançarmos o patamar do debate produtivo. Alceu Amoroso Lima dizia que a polêmica é uma “forma menor de diálogo”, lembrando-nos que ela descaracterizava o debate.

A tolerância surge como ponto de equilíbrio que nos ajuda a fugir dessa armadilha. Devemos estimular o debate democrático mantendo o respeito efetivo e afetivo das minorias, das opções culturais e religiosas.

Ricoeur captou com precisão a dimensão dialética da tolerância, resultado do aprofundado estudo da pessoa humama que ele desenvolveu, no âmbito de uma refinada compreensão das limitações humanas, em seus estudos filosóficos e também nas incursões que fez às obras de Freud. A lição deixada por Ricoeur nos convida a uma reflexão sobre nossas práticas cotidianas. O exercício da tolerância pressupõe escuta, diálogo, mas sempre num espaço em que preservemos os nossos princípios e nossas diferenças. A sociedade conflitiva, no sentido de debate e confronto de contrários em torno de interesses coletivos, é um traço da sociedade democrática. E é dentro do conflito que nossa capacidade de tolerância é colocada à prova. O que almejamos, dentro desse embate, é a construção de consensos que nos conduzam ao bem comum.

Outra importante herança de Ricoeur, e que dialoga com o conceito de tolerância que ele defende, está presente em sua obra Em torno do político, em que ele defende uma função pedagógica do político, na qual se exercita o aprendizado da diferença. Isso nos leva a repensar o papel da autoridade no sentido de resgatar a dimensão da política que contribui para o crescimento das pessoas. É a função pedagógica que se traduz em ações objetivas para a construção da cidadania, permitindo que as pessoas se tornem sujeitos do processo histórico, numa perspectiva de administração participativa.

É importante notar que a proposta da prática da tolerância de Ricoeur se nos apresenta em forma de novos desafios, clareando e explorando as suas zonas de tensão. Umberto Eco pontuou bem no final de seu artigo: é a tensão que vive um homem que “afirmava a tolerância, mas se opunha à indiferença”. Talvez seja esse o motivo pelo qual o artigo de Eco tenha me chamado tanto a atenção. Esse conflito me remete a uma questão que me persegue há muito tempo, que é como encontrar a justa medida entre o lado conciliador com o radicalismo do compromisso com os pobres; com a indignação que se traduza em ação para superar a exclusão social. Isso porque a construção da tolerância no país nos remete ao resgate de uma dívida histórica, formada inclusive quando na vida pública prevaleceu o princípio da conciliação política na perspectiva da tolerância. O problema é que, no Brasil, historicamente esse princípio assumiu o caráter de uma conciliação por cima, excluindo pessoas, famílias e até mesmo comunidades inteiras desse pacto. O desafio que estamos enfrentando (e creio que estamos cumprindo) é o de incluir mais pessoas nesse debate, tornando-o realmente plural e pleno na prática do respeito às diferenças.

Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Artigo publicado originalmente na coluna Opinião do Correio Brasiliense 13/02/2006

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