domingo, 1 de março de 2009

Força civilizadora

Movimentos libertários dos séculos 18 e 19 tiveram importante participação de religiosos e seguramente foi frei Caneca o mais representativo
* Patrus Ananias


Uma das pretensões arrogantes do nosso tempo é o julgamento de pessoas e situações históricas à luz dos avanços científicos e culturais contemporâneos.

Esquecemos os conflitos e iniqüidades ainda presentes em nossos dias e dissociamos as experiências dos nossos antepassados dos contextos e condições objetivas e subjetivas em que elas se realizaram.

Uma leitura equilibrada da história do Brasil, dentro das modernas teorias hermenêuticas, mostra que a forte presença da tradição cristã católica na formação do povo brasileiro, não obstante os inevitáveis equívocos e contradições, apresenta um vigoroso corte civilizador. Já no alvorecer da história brasileira temos a contribuição marcante de dois jesuítas notáveis: José de Anchieta e Manoel da Nóbrega.

O primeiro, poeta, místico e evangelizador dentro dos limites impostos pelas concepções antropológicas prevalentes da época; o segundo, homem prático, de visão estratégica e organizador emérito.
Ambos eram excelentes educadores e começaram por aprender e estruturar a gramática da língua tupi-guarani. Entre os primeiros historiadores e estudiosos das novas terras, destacaram-se alguns religiosos: frei Vicente do Salvador, padre Fernão Cardim e frei Gaspar da Madre de Deus.
Tivemos no século 17 a personalidade singular e brilhante de padre Antônio Vieira, um dos maiores patrimônios da cultura luso-brasileira. No começo do século 18, Antonil, também jesuíta, escreve Cultura e opulência no Brasil, um dos livros de referência para a compreensão de nossa história.
Os pesquisadores discutem ainda hoje as conseqüências da decisão do marquês de Pombal de expulsar os jesuítas do Brasil e buscam também uma compreensão mais ampla do lugar e papel das missões, que em última instância, se tornaram guardiãs da vida e da cultura indígenas.
Os movimentos libertários dos séculos 18 e 19 tiveram importante participação de religiosos e seguramente foi frei Caneca o mais representativo e atual de todos eles, não só por sua generosidade e coragem, mas também pelo sacrifício da própria vida e por sua formação e instigantes reflexões políticas e constitucionais.
A chamada “questão religiosa”, no século 19, foi um divisor de águas nas relações entre a Igreja e o Estado. Após o advento da República, o padre Júlio Maria defendia que à tradicional aliança do altar com o trono, do altar com o poder, emergisse uma nova aliança da Igreja com o povo. Prelados como dom Sebastião Leme, dom Cabral, dom José Gaspar, dom Carlos de Vasconcelos Mota, sempre considerando os limites e condicionantes das circunstâncias históricas, acolhem, em alguma medida, o apelo profético de Júlio Maria e abrem frentes de interlocução com diferentes setores da sociedade brasileira.
Dom Hélder Câmara, nos anos 1950, é o grande inspirador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e torna-se o nome de referência da Igreja no Brasil e da “opção preferencial pelos pobres”. A partir da inspiração de dom Hélder Câmara floresceu uma geração de bispos e religiosos que foi, e muitos continuam entre nós, a mais esplêndida da história brasileira. Surgiram, na esteira da ação católica, as pastorais comprometidas com a vida e a dignidade da pessoa humana, as comunidades eclesiais de base, o movimento de justiça e não-violência, os espaços ecumênicos e do diálogo entre religiões, os grupos de fé e política. Simultaneamente surge o movimento laico com a comprometida conversão de Jackson de Figueiredo e que encontra em Alceu Amoroso Lima a sua ampla e refinada expressão.
Em Minas, destacaram-se Edgar da Mata-Machado e José Dazinho Gomes Pimenta como figuras de referência permanentes de um amplo movimento que une intelectuais, sindicalistas e militantes sociais. É nessa forte e sempre renovada tradição, capaz de aprender com os erros do passado, que se insere a magnífica vida de dom Luciano Mendes de Almeida, que a ela aportou sua contribuição única de sábio e santo.
Sua presença foi de singular referência no clero e no episcopado brasileiro, deixando profundas raízes na evolução cultural e espiritual de Minas. Fiel à igreja, suas qualidades ultrapassam a religião, ampliando o horizonte das possibilidades da desejada aliança entre Igreja e povo e tornando-se importante referência para os que trabalham pela construção da justiça social no país. Descendente de uma das mais tradicionais famílias brasileiras, com uma formação intelectual primorosa, dom Luciano era um construtor de pontes e fez a travessia na direção dos pobres e excluídos.
Foi um autêntico apóstolo de Jesus, um promotor da paz.
* Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Artigo publicado no jornal Estado de Minas, em 31/08/2006

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